10.16.2006

O PS é de esquerda?

1. Um comentário recente no meu blogue colocou a pergunta. Eis a minha resposta: o PS é um partido de esquerda moderada e plural, cuja génese histórica o enquadra na social-democracia europeia e nos valores e movimentos republicanos do século XIX. Desde sempre congregando diferentes sensibilidades no seu seio, com influências que combinaram correntes que vão desde o reformismo marxista da II Internacional ao pensamento social do progressismo católico e absorveu quadros e dirigentes que passaram pelo comunismo, como foi o caso de Mário Soares, o seu líder mais marcante. Com o 25 de Abril de 1974 o PS assumiu-se como um partido de poder e posicionou-se como a força eleitoral de esquerda mais importante da era democrática, e por isso em melhores condições de empreender as reformas necessárias à modernização do país e à integração na Comunidade Europeia. Nas últimas três décadas foi um dos principais protagonistas da cena política portuguesa. No campo da esquerda, como se sabe, disputou com o PCP nos anos quentes do PREC a hegemonia política e a mobilização da classe trabalhadora, conseguindo travar a tentação totalitária que nessa altura ameaçou a nossa democracia. Foi sempre um partido moderado e aberto, fazendo da defesa das liberdades, da tolerância, do diálogo e da justiça social os seus principais valores.

2. Desde a segunda metade da década de setenta e até 1995, a participação do PS no governo decorreu sempre na base de maiorias relativas (até governou em minoria) e, portanto, sem as condições plenas de pôr em prática o seu programa. Mas, apesar disso, e não obstante a moderação da velha linguagem política de esquerda, alcançaram-se importantes progressos nos domínios da educação, da saúde, da segurança social, dos direitos laborais, que reflectiram acréscimos de bem-estar e de cidadania para as classes trabalhadoras e os portugueses em geral. Porém, em todo esse período cometeram-se erros graves de avaliação e muitas vezes enveredou-se por práticas de gestão das instituições e dos recursos, muito danosas para o país. A alternância no poder entre os dois partidos do “bloco central” favoreceu alianças perversas e o tráfico de influências, dificultando a coesão programática do partido em torno de uma orientação estratégica moderna e europeísta. O pragmatismo que passou a prevalecer, além de favorecer o crescimento desregrado da burocracia e de permitir a penetração do partido e do Estado por múltiplas teias de interesses pessoais e corporativos, não decorreu em favor de uma visão de longo prazo para a modernização da economia e das instituições, antes se limitou ao desenvolvimento de infraestruturas e à gestão imediata dos ciclos políticos. Os imensos recursos da Comunidade Europeia, sobretudo nos governos de Cavaco Silva, foram largamente esbanjados, e os sistemas públicos, no ensino, na saúde, na justiça e na administração pública cresceram de modo desregulado, permitindo-se enormes aumentos da despesa pública, uma parte substancial da qual reverteu em favor de interesses privados. O crescimento do ensino superior privado é um bom exemplo. Um dos grandes erros de então – mas aí principalmente da responsabilidade do PSD – foi ter-se enveredado por um economicismo mercantilista sem causa, quando se devia ter apostado fortemente numa estratégia tecnológica, que desenvolvesse a ciência e o ensino superior de qualidade, em vez do seu crescimento desregulado. Entretanto, cresceu o individualismo, o consumismo e mais tarde o endividamento das famílias. Com A. Guterres, o PS desenvolveu, especialmente no primeiro mandato, um conjunto de políticas públicas progressistas e o país melhorou em muitos indicadores, nomeadamente nas áreas sociais e na ciência. Guterres abandonou, Ferro Rodrigues foi esmagado pelo processo Casa Pia e o resto já sabemos.

3. O governo de José Sócrates procurou imprimir a necessária seriedade e capacidade de decisão para modernizar o país e torná-lo competitivo. O seu estilo tecnocrático tenta combinar o sentido pragmático de equilíbrio do orçamento com a defesa de um Estado social ameaçado e em crise. Usa como ninguém a imagem e o discurso mediático e tem mostrado mais consistência do que esperavam os seus detractores. São as políticas actuais de esquerda? Para continuar a governar e ao mesmo tempo permanecer um partido de esquerda, o governo terá de ser bem sucedido nas reformas que está neste momento a empreender, mas estas correm o risco de falhar se não souber envolver as pessoas, dialogar com os sindicatos e motivar os trabalhadores. Esse estímulo é fundamental e faz-se colocando dirigentes competentes e líderes reformistas nas instituições. Para dar eficácia e competitividade às organizações e às empresas é necessário visão estratégica e gestores de qualidade, e com sensibilidade social, isto é, com capacidade de envolvimento das equipas que lideram. Essa componente não é secundária. Sabemos bem que as grandes reformas são muitas vezes impopulares e que têm que atacar interesses e rotinas instaladas. Mas parece-me que neste momento se está a atacar a eito amplos sectores da força de trabalho, aumentando a pressão sobre o conjunto dos trabalhadores em diversos sectores e serviços públicos, sob o argumento da contenção do défice, sem que por outro lado se antevejam contrapartidas que estimulem os funcionários dedicados e competentes ou que lhes permita manter a estabilidade e a segurança no emprego. Pode parecer justo aproximar o nível de sacrifícios exigíveis entre o sector privado e a administração pública, mas corre-se o risco de se estar a nivelar por baixo as expectativas dos portugueses, retirando segurança aos poucos sectores onde ela existia.

4. A política de esquerda tem de centrar-se na defesa da qualidade do ensino público e na luta contra o abandono escolar, no combate à desertificação do interior, nas defesa dos recursos naturais e ambientais, nas políticas sociais de apoio à inclusão e à igualdade de género, nos programas de combate à pobreza e ao desemprego, na melhoria do sistema se saúde de acesso universal e gratuito, na dinamização do sistema científico e tecnológico, na melhoria e abertura do ensino superior público, com alargamento da acção social e dos regimes de bolsas de estudo para os jovens filhos de famílias necessitadas. O estímulo à competitividade tem de manter a educação, a inovação tecnológica e a formação permanente no centro das atenções. A política de esquerda mede-se pelos resultados das reformas para o bem-estar geral e pela criação de melhores condições de vida e de oportunidades para os segmentos mais carenciados da população. Mas a onda de contestação em curso aconselha a que se poderem bem as medidas a adoptar e os processos da sua aplicação.
Fonte: Blogue Boa Sociedade (http://boasociedade.blogspot.com)

Elísio Estanque