Intervenção de Helena Roseta1. Tomo a palavra em nome da Moção “Solidariedade e Cidadania”, de que sou, em paridade com José Leitão, primeira subscritora. Tenho muita honra em ser a primeira mulher a trazer uma moção global ao Congresso. Mas não falo só em meu nome, nem apenas pelos onze delegados que elegemos. Falo pelos 211 militantes a quem agradeço a solidariedade recebida, mesmo se estamos contra a corrente.
2. O Secretário Geral fez ontem um discurso importante. Disse o que entendia ser hoje o papel do PS e do governo. Disse também que a sua energia lhe vinha do sentido do dever e da confiança dos eleitores. Também nós temos o sentido do dever. E o nosso dever hoje aqui, no Congresso do PS, é ser capaz de trazer aqui as dúvidas, perplexidades e interrogações que hoje se colocam a muitos milhares de portugueses.
3. A história do PS confunde-se com a história da democracia. Mas a história do PS no governo não começou com a nossa primeira maioria absoluta. O PS já esteve várias vezes no governo, já fez grandes reformas de que se orgulha e tem muitas responsabilidades no estado de coisas em que hoje nos encontramos.
4. A grande questão que hoje se coloca a um governo socialista é saber se é possível aplicar as suas políticas e fazer as suas reformas num contexto de capitalismo global. O dinheiro e o consumo parecem ser hoje os determinantes absolutos da maioria das pessoas. Vivemos numa sociedade crispada. Há vastos sectores das classes médias que sentem o seu poder de compra degradar-se e o seu futuro ameaçado. Não foram apenas os mais desfavorecidos e excluídos que deram a maioria absoluta ao PS. Há muita gente que votou em nós porque quer um país mais desenvolvido, mais justo, mais moderno. Mas que não aceita o agravamento das desigualdades. Nem aceita ser catalogado como “corporação” por defender interesses que são legítimos e que têm de caber no conceito de interesse geral.
5. Mas a interpretação do que é “interesse geral” não é um exclusivo do governo. Em tempo de sociedades complexas, é cada vez mais difícil definir o que isso seja e saber quem o define. Não basta uma indicação eleitoral de 4 em 4 anos. São precisos novos mecanismos que permitam incluir os governados nas decisões dos governantes. A democracia representativa tem de ser enriquecida com formas de democracia participativa. Essa é para nós uma das grandes lacunas do governo e do partido neste momento – a dificuldade de compreender, integrar e desenvolver formas de participação activa dos cidadãos. Não basta “ouvir a rua”. É preciso respeitar os cidadãos e os seus movimentos.
O papel dos governos já não é o de serem os intérpretes únicos do interesse geral. Cabe-lhes definir estratégias em que a sociedade civil se reveja – e cabe-lhe sobretudo desenvolver formas colaborativas de exercer o poder. É isto que está contido no novo conceito de “governança”. É um tema que o PS, em minha opinião, terá de aprofundar, sob pena de ficar aquém da história. Não haverá esquerda moderna sem esta componente fundamental da cidadania.
6. Uma das nossas responsabilidades neste Congresso é colocar esta pergunta: o que estamos a fazer no governo é o que prometemos? Temos de ter a coragem e a humildade de ser implacáveis na resposta.
Podia dar exemplos, mas o mais importante é outra coisa. Só se compreenderão e aceitarão medidas diferentes do que se prometeu se as razões das mudanças forem justas. Mas isso implica que elas possam ser livremente discutidas no seio do PS. E que não nos colem etiquetas de cada vez que questionamos o que tem de ser questionado.
7. Tenho pena que o PS não tenha feito trabalho de casa antes do Congresso. Nenhuma estrutura do partido promoveu qualquer debate das três moções. E, no entanto, Portugal enfrenta desafios enormes e não apenas a nível do governo. Somos hoje um país de imigrantes. Mas não somos ainda, longe disso, uma sociedade inclusiva. Basta olhar para o que se passa em matéria de direito à habitação. Não posso aceitar – já falei disto nos órgãos nacionais e volto a trazer aqui o tema - , não posso aceitar seja em nome do que for que se deitem abaixo barracas com pessoas lá dentro que não têm alternativa de habitação. A nossa luta não pode ser contra os mais pobres – mas sim contra os que abusam do poder e do dinheiro.
8. Portugal é também hoje um país desordenado, com cidades históricas a perder gente, aldeias a morrer, subúrbios a crescer e extensas zonas abandonadas. É um país que envelhece, o que desafia muitas das politicas tradicionais. Não é possível mudar o estado caótico do nosso território e a destruição sistemática da paisagem, não é possível cumprir o Protocolo de Quioto, se não houver uma nova atitude e novos comportamentos. O que passa por dentro das autarquias. Conheço a enorme responsabilidade dos autarcas hoje, sujeitos a pressões imobiliárias de escala global, e sem meios nem instrumentos para fazer prevalecer o interesse geral.
O PS tem a obrigação de apoiar os seus autarcas. Como tem a obrigação de ouvir os movimentos de cidadãos que um pouco por todo o país procuram lutar pelo território, pelo património, pelo ambiente, pelo direito das pessoas a viver em paz com a natureza.
9. O que me leva a focar outro ponto, até agora ausente deste debate: a questão da corrupção, que mina a credibilidade na democracia. É nas relações pouco transparentes entre interesses imobiliários, pressões clubísticas, autarquias e partidos que se geram as “caixas negras” onde floresce a corrupção. Também aqui temos de ser implacáveis. Não compreendo, por exemplo, por que é que a lei do financiamento partidário, que o PS tanto apoiou, não seja cumprida pelo próprio partido. O rigor que exigimos não é só nas contas públicas, tem de ser também nas contas partidárias.
10. E por falar em rigor, deixo aqui um apelo para o futuro: por favor sejam mais exigentes nos nossos procedimentos democráticos. É tão legítimo votar a favor como votar contra. Um voto
não não pode sistematicamente ser transformado em voto nulo. Não é rigoroso e não é verdade.
11. Vim a este Congresso com a Moção “Solidariedade e Cidadania” para dar um contributo à nossa reflexão. Permitam-me duas notas finais:
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a questão das presidenciaisPara além da vitória nas legislativas e das grandes responsabilidades no governo, o partido enfrentou, desde o último congresso, algumas derrotas. A mais grave, a meu ver, foi a das presidenciais. José Sócrates disse aqui ontem que a nossa maioria absoluta começou com o congresso de 2004, onde houve debate profundo, alargado aos militantes e à sociedade.
Caro Secretário Geral, tem aí um exemplo do bom caminho a seguir: não volte a escolher candidatos sem ouvir os militantes.
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a questão do referendo sobre a IVG
Vou evidentemente apoiar todas as iniciativas do partido e dos movimentos pelo
Sim. Mas em 1998 estive, sem o partido, no movimento do
Sim. O mau resultado que tivemos também se ficou a dever ao facto de o partido nessa altura não ter tomado posição. Estiveram muitas camaradas nossos nessa luta, mas o partido não. Quem esteve então a nosso lado foi a Juventude Socialista, desde o início – honra lhe seja.
Em 2001 levei uma moção ao Congresso sobre esta matéria. A moção foi derrotada e alguns dos que estão hoje aqui na mesa não a votaram. O seu voto foi evidentemente legítimo, mas estiveram contra ou calados. Por isso fico muito satisfeita por ver agora todo o partido empenhado nesta causa. É sinal que as minorias de ontem podem ser maiorias mais tarde. Espero que o
Sim ganhe e vou fazer tudo por isso. Mas permitam-me uma proposta pessoal ao Congresso: se o resultado do referendo não for vinculativo ( num sentido ou noutro), proponho que o Grupo Parlamentar do PS mude a lei no parlamento. Não podemos ficar mais 4 ou 8 anos à espera.
São estas as palavras com que queria terminar o meu contributo. Podem agradar a alguns e desagradar a outros. Mas isso não me impede de estar aqui com toda a convicção, na luta por causas que julgo serem de todos: a solidariedade e a cidadania.